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Correspondente do Brasil:Angola: Acidentes ou incidentes de estrada Por Francisco G. Amorim Sol Português
Para os que não conhecem, comecemos por um mapa dos grupos étnicos de Angola, cujas línguas ou dialectos se podem, mais ou menos, resumir do seguinte modo: bakongos; ambundos (dialetos kicongo e um pouco chokwe); ovimbundus quase todo o sul do país; e khoisan, os bosquímanos com uma língua muito primitiva, sem igual. Os dialectos têm bastantes diferenças e por vezes a conversa entre esses povos não era fácil. Agora vamos a duas histórias, vividas há uns pares de anos naquela tão saudosa terra.
1962 De Maquela do Zombo para a Damba, região norte dos bakongo
Bem perto da fronteira com o Zaire a guerrilha não dava muita trégua, o que tornava perigoso circular por aquela região. No entanto, volta e meia as coisas apresentavam-se mais calmas ou mais controladas, e sempre aparecia quem se aventurasse a fazê-lo de carro. Não havia outro meio de visitar todas as povoações, porque poucas justificavam ter uma pista para aviões, por pequena que fosse. Além disso, o eventual ataque de guerrilheiros a carros particulares era raro, menos ainda numa estrada de bom piso. De qualquer modo, raros eram os carros que ali passavam. A estrada estava boa, piso firme e liso, e o carro desta vez um Fusca seguia em boa velocidade. Comigo só o ajudante, que falava, além de português, nada mais do que a língua da sua região, o kimbundo. De repente, ao passar ao lado de uma sanzala, um porco de razoável tamanho, pesando umas quatro arrobas, lembrou-se de atravessar a estrada. Sem hipótese de desviar ou travar, o Fusca apanhou-o e atirou-o longe. Que chatice. Logo em plena região efervescente. Pára-se o carro e analisam-se os estragos mútuos. Um porco morto e um pára-lamas torcido, encostado ao pneu. Acorre gente. Primeiro a criançada, os candengue, e os homens, enquanto as mulheres largam o pilão, a mandioca, as quindas e os mussalos para virem juntar-se ao grupo de espectadores. Num instante está um monte de gente à nossa volta, mais ou menos todos a falar ao mesmo tempo, para si mesmos, uns com os outros ou somente emitindo expressões de pasmo. "Háca! Aiué!" A língua daquele povo é o kicongo mesma remota raiz do kimbundo (?), mas assaz diferente, para não permitir entendimento fácil com as gentes do centro e do sul. E a gente daquela sanzala pouco ou nada falava de português. Para encetar o diálogo avança um homem, uma espécie de intérprete porta-voz do pensamento e vontade da comunidade. Começa a discussão, calma e difícil por causa da língua, mas não impossível, sobre o porco, que estava morto. Todos na esperança, quase certeza, que o motorista lhes ia pagar o animal, procuravam valorizá-lo. Para que não houvesse divergência de atitudes e valores a passar ao branco, antes de se pronunciarem conferenciavam primeiro entre si e o porta-voz transmitia a opinião aprovada. Depois era preciso traduzir a mensagem, e a seguir discuti-la. Regatear o valor. O primeiro valor é sempre alto! Voltava o grupo a confabular entre si, uns quantos mais calmos e condescendentes, e outros de linha dura, deixando transparecer que nem todos estavam de perfeito acordo, mas cabendo sempre ao mesmo porta-voz transmitir a opinião se não unânime, pelo menos da maioria, e acordada. Tudo isto sem pressa, pacífica e tranquilamente. Para eles o tempo passa devagar, sabendo também que as cadelas apressadas parem os filhos cegos! Encostado ao carro, eu gozava aquela negociação, feita com a colaboração do ajudante, bailundo forte, o Agostinho, que não entendia bem creio que nem mal a língua daquela gente. Entretanto eu deixara de ter pressa porque aquele diálogo era sensacional e muito me divertia. Ao fim de um bom tempo tinha-se conseguido estabelecer a primeira plataforma de entendimento: o valor do porco. Cem escudos. Mas era conveniente que se repetisse para que não restassem dúvidas: "O porco vale então 100 escudos?" Todos abanaram positivamente a cabeça, porque 100 escudos era linguagem geral! A cara deles mostrava-se satisfeita com o acordo. Estava encerrado o primeiro capítulo. Depois desta etapa, decidi que era preciso passar a discutir um outro aspecto importante da questão: a estrada fora feita para porcos ou para carros? Não esperavam por esta e com ar de candengues apanhados com a mão no doce, recomeçaram as sessões parlamentares entre todos, que não tiveram muita dificuldade em concordar que as estradas haviam sido feitas para carros. Sentido de justiça não lhes faltava e mesmo sabendo que podiam perder a disputa, se disputa se podia chamar àquela procura de entendimento, não negavam o que a consciência lhes ditava. O porco não devia ter atravessado a estrada. Fim do capítulo segundo. Até aqui já se tinham passado talvez uns 30 minutos. O semblante daquela gente perdera parte do sorriso! Já anteviam os tais 100 escudos a voarem! Novo ponto a discutir: uma vez que a estrada era para carros, o porco é que havia estragado o carro, que ficou com um pára-lama todo torcido a que entretanto o Agostinho já havia dado, ali mesmo, um jeito para não encostar no pneu, que não chegou a sofrer quem devia pagar a reparação? Aquele pessoal, com ar ainda um pouco mais triste, após conferenciarem novamente entre si, acabaram por acordar que a verdade era uma só: a culpa era do porco. Todos, através do porta-voz, acabaram por dizer que sim e ficaram em silêncio à espera do desfecho do diálogo. Calculou-se então que a reparação do carro custaria outros 100 escudos, assunto de que eles não tinham noção e que na verdade ia custar bem mais. Ao fim de mais outro tanto tempo, concordaram também nesse valor. Quarto capítulo. Recapitulando, antes de passar à final: se o porco valia 100 escudos, a culpa do acidente fora do dito porco e o custo da reparação era também de 100 escudos, está-se mesmo a ver que quem ia pagar o estrago era o próprio porco. Desilusão. Começaram por pensar que além de ficarem com o porco para o comerem, ainda iam receber 100 escudos de indemnização, e agora não só não receberiam nada, como tinham que entregar o porco para compensar o prejuízo do carro. O ar era de tristeza. Ficou no entanto bem assente que eu levaria o porco para me pagar dos estragos por ele feitos. O porco passou a ser minha propriedade. Tudo muito devagar e cordial, nunca se passando ao ponto seguinte sem que o primeiro ficasse bem claro em suas mentes. Mas o que é justo é justo! Nessa época eu trabalhava na fábrica de cerveja Cuca, a mais antiga e bem conhecida em todos os cantos de Angola, e sempre viajava levando o carro abastecido com umas quantas caixas, para o que pudesse acontecer. Nunca havia perigo de se acabarem porque no próximo distribuidor repunha o estoque. "Bom, então o porco é meu." "Sim, siô." Vai começar nova discussão, desta vez mais subtil e delicada. "Eu não quero o porco. Vou dá-lo para vocês comerem." "???!!!" Não queriam aceitar. Aquilo fazia muita confusão nas suas cabeças. Porque lhes havia de oferecer o porco? Alguma coisa ia querer de volta. O negócio não estava a cheirar-lhes bem! Nunca alguém lhes tinha dado alguma coisa sem querer de volta uma paga maior. Desta vez não era o caso. Foi difícil convencê-los que eu simplesmente lhes oferecia o porco e não queria nada de volta. Assim mesmo, continuavam desconfiados. Só se convenceram quando finalmente o Agostinho, a um sinal meu, tirou de dentro do carro uma caixa de cervejas e lhes entregou. "Como vocês foram simpáticos, não só vão ficar com o porco, como ainda com esta caixa de cerveja, para acompanhar a festa." Como se pode imaginar, isto não foi dito com tanta singeleza, por dificuldade de entendimento linguístico. Quando por fim ficaram bem cientes de que iam mesmo ficar com o animal, sem pagar nada, e ainda por cima recebiam, de graça, uma caixa de cervejas, foi uma festa. Toda esta conversa durou perto duma hora, mas valeu a pena. Analisar as discussões entre eles, cautelosos para não deixarem transparecer os seus pensamentos, desconfiados com um indivíduo branco que nunca tinham visto, e desejosos de, como todos, levar alguma vantagem, era um espectáculo único. Nas suas caras via-se agora tranquilidade. As crianças não entenderam muito bem o negócio, nem era negócio que lhes interessasse, mas os adultos, homens e mulheres, batiam palmas de alegria e agradecimento. Correram a pegar no porco para o esfolar e não queriam deixar-me ir embora sem que ficasse para o comer com eles! Infelizmente não podia. Naquela estrada não se devia circular de noite e ainda tinha muito quilometro a percorrer. Bebemos uma cerveja juntos, quase trocámos juras de amizade eterna, o que não era difícil de concretizar, e depois, com mágoa, tivemos que partir.
***
Não muitos quilómetros adiante, a estrada estava em construção, ou reconstrução, e como tinha chovido bastante nos dias anteriores as obras tiveram que parar porque, numa extensão ainda grande, aquilo se transformara num lameiro. Barro vermelho, terrível, em região de café, quente e húmida. O Fusca é um carro especial e, com alguma experiência, é difícil deixá-lo atolar, mesmo nesses lameiros imensos e profundos. Qualquer outro carro, incluindo os Jeep, dificilmente os atravessam. O Fusca dança em cima da lama, entra com as rodas nos trilhos fundos de outros carros, normalmente camiões, roça a barriga pelo chão, escorrega aqui, empurra ali, mas lá progride, Deus sabe como. De repente, pela frente um camião tombado. Derrapara na lama e estava caído de lado. A carga era de animais: porcos, cabras, galinhas, patos, etc., tudo por ali espalhado, uns ciscando, outros fuçando ou picando um pouco de capim aqui e acolá. O motorista e o ajudante, sentados no chão à sombra da carroçaria, procuravam que os animais não se dispersassem enquanto aguardavam o socorro, pedido na véspera. Tinha que vir um tractor potente para endireitar o carro, ainda por cima tendo que o fazer no meio de um lamaçal que estava longe de secar. Quando chegaria? Quem sabe. Paciência era uma virtude que não podia faltar a quem andava naquelas estradas. O acidente tinha sido na véspera, há mais de 24 horas, e tudo ali jazia sob um pesado calor húmido e um desconforto total. Nem na cabina do carro podiam dormir porque o banco estava na posição quase vertical! No meu carro, além das caixas de cerveja, ia também uma bolsa isotérmica, que antes da saída de qualquer povoação se enchia com o máximo possível de cervejas bem geladas, e que assim se mantinham o dia todo. Como é evidente, não podíamos fazer nada para ajudar os homens a sair daquela situação. Parei o carro. "Boa tarde, isto é que foi azar, iam para onde, vêm de onde, etc.", mas nada mais que isto. A não ser: "Quem quer uma Cuca gelada?" Perguntar ao nu e esfarrapado se quer uma camisa! "Você vê-nos nesta situação miserável e ainda vem gozar connosco? Cerveja gelada, hein? Siga a sua vida e deixe a gente em paz!" disse o motorista com cara de poucos amigos. "Bom, querem ou não querem uma Cuca geladinha?" "Se isso fosse possível, era milagre. É tudo quanto eu estou a desejar desde que o sol começou a aquecer. Mas por favor, não brinque com coisas sérias." Fui ao carro, tirei duas cervejas, que estavam mesmo geladas, e quando as entreguei aos homens, eles não queriam acreditar! Não é que lhes apareciam, ali no meio de nada, onde ninguém passava há 24 horas, duas cervejas, e geladas! Era mesmo milagre! O espanto na cara daqueles homens era digno de ser perpetuado! E a alegria? Beberam com um prazer que de certeza nunca outra cerveja lhes havia proporcionado! Só se ouvia: "Aaaahhhh, que maravilha!" Tive que continuar viagem, mas de certeza aqueles homens, que ainda ali ficaram, esperando por outra ajuda, nunca mais na vida devem ter esquecido que um dia lhes caiu do céu uma Cuca bem gelada. Uma não, duas, porque antes de seguir viagem deixei-lhes outra dose. | ||||
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