PENA & LÁPIS


Enlouquecendo as Sombras*

Da liberdade, das redes sociais e das vivências da nossa Diáspora

"Devemos ser livres não porque reclamamos

a liberdade, mas porque a praticamos."

– William Faulkner (escritor americano)

Por Diniz Borges

Sol Português

Um dos bens das democracias modernas é a liberdade de expressão. Sem ela não há verdadeira democracia.

No pós-modernismo, que é o nosso quotidiano no mundo ocidental, temos, pela via das novas tecnologias a liberdade de expressão em tempo real. Sai uma notícia, e, instantaneamente lá estão os comentários nas redes sociais. Isso é saudável. A democracia morre na escuridão, como nos relembra o slogan do jornal Washington Post.

A liberdade de expressão é sacrossanta em qualquer sociedade que queira construir um estado democrático e é, como se sabe, parte integral da declaração dos direitos humanos das Nações Unidas.

Apesar de fazer parte de todos os estados democráticos, de aprendermos sobre a importância deste direito nos bancos da escola e o debatermos nos bancos das universidades, ainda continuamos com dificuldade na interiorização e nas vivências deste conceito sem o qual não há democracia.

É que tal como afirmou o linguístico e comentador político norte-americano de quem muitos americanos têm medo, Noam Chomsky: "se não acreditamos na liberdade de expressão para as pessoas com quem não concordamos ou que desprezamos, então não acreditamos na liberdade de expressão." Infelizmente é o que se lê, ouve e vê, no mundo do "tempo real" e no mundo da nossa Diáspora.

Num clima altamente divisório, como o que infelizmente ainda vivemos nos Estados Unidos, produto de várias razões, desde o pecado original americano à exacerbada retórica da nossa classe política (amplificada com o retorno de Donald Trump), é mais importante do que nunca que, como sociedade (e como diáspora açoriana), pratiquemos o culto à liberdade de expressão.

É que o quotidiano americano ainda está demasiadamente marcado pelos insultos gratuitos, a mentira, o partidarismo infantil e nefasto e a vilificação de quem não partilha a nossa ideologia.

A demagogia política que está derramada em muitos sectores do mundo ocidental afoga-nos e cria clivagens altamente perigosas para uma sociedade multicultural, até mesmo no seio dos emigrantes (os portugueses e os de outras nacionalidades e culturas) e seus rebentos, que, infelizmente, cedo demais se esquecem das suas raízes, dos sacrifícios dos pais e avós, e da discriminação que viveram.

As redes sociais, criadas para aproximar as pessoas e serem plataformas de liberdade de expressão, estão neste momento, apesar da ainda curta existência, em crise. Pelo menos em crise ética. Não são apenas os oportunismos político-partidários americanos, mas acima de tudo as pessoas, de todas as classes sociais e das mais variadas profissões, que no seu quotidiano preferem o insulto em detrimento da formação.

Tal como nos lembra o escritor Salman Rushdie, ele próprio recentemente agredido violentamente pelo que diz e escreve, há dois pilares sem os quais não temos um país livre e democrático: a liberdade de expressão e um estado de direito. Ambos estes princípios estão, infelizmente, em jogo.

Quando um partido político assalta a liberdade de expressão, enaltece nacionalismos populistas, santifica patriotismos ocos e se acha acima da lei, e o outro pouco ou nada diz, as repercussões são sentidas nas mais variadas vertentes da sociedade. As redes sociais mostram-nos, clara e inequivocamente, esse comportamento, altamente perigoso para a sociedade americana e a experiência democrática.

Seria bom relembrarmos a célebre frase de Nelson Mandela: "ser pela liberdade não é apenas tirar as correntes de alguém, mas viver de forma que respeite e melhore a liberdade dos outros."

Para quem queira olhar e enfrentar o que está mesmo à frente dos olhos, verificará, sem muito esforço, que no mundo português em terras estadunidenses vive-se, como em outras comunidades étnicas, a agitação desta modernidade e sentem-se as repercussões do populismo, das opiniões dadas à flor da pele e, acima de tudo, do vitupério para quem não tem a nossa opinião.

Evelyn Beatrice Hall (1868 – 1956), escritora britânica que escreveu sob o pseudónimo de Stephen G. Tallentyre, num texto analisando a obra do filósofo francês Voltaire afirmaria o que deve ser sagrado em democracia: "posso não concordar com nenhuma das palavras que disser, mas defenderei até à morte o seu direito a dizê-las."

Infelizmente, não é nada de novo nas nossas comunidades de origem portuguesa nos Estados Unidos andarmos demasiadamente ligados aos movimentos nativistas apesar de sermos todos emigrantes. Não são originais os insultos, as ameaças e as chantagens aplicadas a quem se discorda nas redes sociais. Antes fossem.

Há várias décadas que neste nosso pequeno mundo luso-americano tenho testemunhado as intimações efectuadas com muita crueldade perante com quem se discorda. Pessoalmente também as senti e ainda as sinto na pele.

Já fui acusado de tudo! Nos primeiros anos da minha carreira no ensino entraram, repetidamente, a afectar o meu trabalho como educador. Quando critico as entidades governamentais, sou anti-americano; quando exijo às entidades portuguesas um outro tratamento da diáspora, sou anti-português; quando questiono a decadência nas religiões, sou anticatólico; quando apelo à justiça social, sou comunista.

Bem o disse Dom Hélder da Câmara: quando dou comida aos pobres, chamam-me santo. Quando pergunto porque é que eles são pobres, chamam-me comunista.

O que é novo nas nossas comunidades da diáspora, graças às novas tecnologias que dão voz a tudo, incluindo os perigosíssimos absolutismos, são os ultrajes espontâneos e a facilidade com que se apega a pseudonotícias, a falácias chanceladas por falsos profetas, a páginas nocivas, a informação altamente tendenciosa para subscrever as afirmações com que se afronta quem não tem a mesma opinião.

Adicionam-se, infelizmente, dois outros segmentos. O primeiro, os vícios do novo-riquismo, que se ficassem pela pompa e circunstância de um festejo provocado por uma mal-entendida lenda seria um mal menor. Porém, quando chegam às classificações sociais da comunidade e a provocarem falta de empatia, aí já roçam a deturpação da idiossincrasia e dos valores culturais.

O segundo baseia-se num mal do "melting pot" americano, que até já nem a política americana, mas que ainda reina no seio de muitas comunidades, incluindo a nossa: a pressa de quem acaba de chegar ser mais nativista do que os nativos – ou de como diz o velho cliché: mais papista do que o Papa.

Esta pressa, sem examinarmos a história dos Estados Unidos, leva-nos, como comunidade, a cair com muita facilidade nos populismos exagerados de uma "América Primeiro", que não é novidade nenhuma nos dois séculos e pouco da história americana. Já outros o tentaram.

A xenofobia não é uma falha deste século. Aliás, fomos vítimas dessa xenofobia em muitíssimos momentos da história americana, sendo a lei da emigração promulgada em 1921 a mais flagrante. A primeira lei da emigração nos EUA no século XX reduzia a números quase insignificantes a entrada dos que apelidavam de europeus escuros, em que estávamos incluídos.

Entristece-me quando vejo emigrantes portugueses e luso-descendentes, muitos vindos ou com origem nos Açores, encarrilando pelas rotas da intolerância e o desrespeito pela liberdade de expressão. Infelizmente repetem-se demasiadamente nas redes sociais.

Lá estão no assalto às expressões artísticas, quer na incompreensão da sátira política ou da comédia política (que tem uma longa tradição no mundo americano, veja-se a história da comédia que a CNN tem emitido); quer na simples partilha de uma opinião que não coadune com a nossa.

Não partilho da opinião do filósofo e escritor Umberto Eco de que: "as redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis". Acho que as redes sociais servem (e podiam servir mais ainda) para amplificar a liberdade de expressão, para democratizar o debate público. Permitem é que, pela virtude (ou desvirtude) do tempo real, as pessoas descartem, sem qualquer reflexão, uma dose de injúrias que têm apenas um único objetivo: insultar.

É que tal como gostava de dizer a antiga juíza do Tribunal Supremo de Justiça dos Estados Unidos, Ruth Bader Ginsberg: podemos discordar sem sermos discordáveis.

É tempo de aprendermos a dar a nossa opinião, de utilizarmos a nossa liberdade de expressão, sem atingirmos as vidas das pessoas. Na nossa diáspora na América do Norte, é também mais do que tempo de encararmos a realidade de quem somos e traçarmos o caminho que precisamos, conscientes de que todos somos estrangeiros e de que temos muito mais em comum com os imigrantes que aqui chegam todos os dias do que com o nativismo que adoptamos sem qualquer resistência.

Para além de pensarmos antes de atirarmos e insultarmos as pessoas até à sétima geração com alguma facilidade nas redes sociais, seria também muito bom que nas nossas comunidades da diáspora distinguíssemos entre o debate sério e necessário para o crescimento comunitário e o paternalismo repelente e de elogio fácil que, infelizmente, ainda é tão comum.

* Do poema "Ode à Noite III", de Natália Correia, cujo centenário se comemora este ano.


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