PENA & LÁPIS


Correspondente do Brasil:

Habemos Nigrus Papam – Parte V

Por Francisco G. Amorim

Sol Português

A história da Etiópia começa com muita guerra. Guerra com o Egipto, que chegam a dominar durante mais de um século, e até com os romanos, que conseguem repelir.

Depois, com o avanço do Islão pelo norte e leste, conseguem no século XVI a ajuda dos portugueses que andavam em demanda do lendário Preste João, o que retardou em quase dois séculos o avanço dos muçulmanos e salvou o seu cristianismo de ter sido aniquilado.

No século XIX sofrem invasões de italianos e ingleses, recuperam muito mais tarde a sua independência para aí começarem, ou continuarem, as piores e mais horrendas guerras, as civis. Ou tribais. Ou... indiferente. Guerra sempre foi a mesma coisa: destruição e morte. Rolam os interesses, as ganâncias, a ambição pessoal e o povo fica mais pobre, mais sofrido, mais desconfiado, menos amigo do desconhecido.

Esse povo, da mesma remota origem do que a sua, recebeu o novo padre com curiosidade. Até ali os únicos missionários católicos que tinha conhecido eram franceses ou italianos e agora chegava-lhes um africano e, o mais extraordinário, filho da terra.

Para gente simples qualquer religião pode servir porque o mais importante é o abandono em que se encontra, com fome e sem paz. Isso se vê um pouco por toda a África onde depois do colonialismo o povo parece ter ficado ainda mais relegado para planos esquecidos, porque a primeira atitude dos novos governantes foi o afirmarem-se no poder e nos bens materiais. Depois a fome e as secas que não os largam e, por fim, a paz, outra natural ambição cada vez mais incerta.

Esta consciência carregam os etíopes, sobretudo os monges, estudiosos e sábios, encarregados de manter a história e a religião vivas no coração e mente do povo.

Por tudo isto, a aceitação de um outro culto é extremamente difícil, o que não constituía novidade para o jovem Cipinga. Ele sabia que depois que os portugueses ajudaram a salvar o cristianismo do avanço do Islão, no começo do século XVI, surgiu o desejo de levar a Etiópia para a "verdadeira" religião, a igreja de Roma.

Nos ombros de Cipinga assentava uma múltipla carga. Uma era a básica, inerente ao seu trabalho de missionário católico, pesada e difícil, e sobretudo por ser um "filho da terra", para quem a responsabilidade era muito mais evidente. A outra o respeito pelas tradições milenares, desde para com aqueles que continuavam a praticar os ritos animistas ou naturalistas, aos judeus "descendentes" do rei Salomão e da rainha de Sabá e aos cristãos "descendentes" também destes reis bíblicos, seguidores da Igreja fundada por São Frumêncio, santo cultuado desde Roma a Alexandria, Arménia e sobretudo na própria Etiópia.

Ele sabia tudo isso, mas preocupava-o acima de tudo pertencer a uma Igreja considerada "estrangeira"! Seria daí para a frente o seu objectivo primário transformar essa Igreja em simplesmente Igreja do povo, filhos de Deus, tivesse ela a sua cabeça em Roma, em Alexandria ou em Adis Abeba.

A Igreja não podia ser estrangeira, muito menos ele que ali tinha parte das suas raízes, plantadas tão fundo como qualquer outro a quem a má sorte não tivesse obrigado a fugir.

Os missionários trabalhavam muito mais do que pregavam. O povo não tinha estradas nem a maioria das aldeias água por perto. Não conheciam o saneamento tal como hoje é concebível.

Sob um sol forte iam-se abrindo caminhos para que alguns carros pudessem transitar, construindo pequenas pontes que permitissem acesso também mais fácil a grupos quase isolados, e de Itália chegavam algumas doações consideradas elementares para se estruturarem as bases de uma vida com um pouco mais de dignidade e conforto.

Escolas e postos de saúde, ferramentas agrícolas, moto-bombas e canalização, além de medicamentos, eram a base do apostolado dos capuchinhos, que viam à sua volta a Igreja crescer, devagar, sendo aceites e muito estimados, mesmo estrangeiros, um deles na Etiópia há quase 50 anos!

Cipinga trabalhava muito, rezava e visitava todas as casas que pelos caminhos que pisava lhe surgiam pela frente. A sua saga, e sobretudo a saga do seu avô, era escutada com respeito e entusiasmo. De porta em porta, não tardou a chegar ao contacto com alguns monges.

Ao fim de quase dois anos, pediu que o autorizassem a passar alguns dias das suas "férias" junto de um mosteiro ortodoxo. Aproveitaria para meditar e estudar, e ao mesmo tempo, apesar de jovem e robusto, descansar um pouco das agruras do trabalho manual.

O mosteiro era um dos vários dos tempos antigos que estão em algumas das 37 ilhas do Lago Tana, lugar maravilhoso para meditar e estudar!

Clima ameno, a 1.800 metros de altitude, a quietude e a vida monástica de uma simplicidade cristã proporcionavam-lhe exactamente o que procurava: retiro espiritual, e porque não físico também, mas em primeiro lugar a oportunidade de melhor conhecer e compreender aquela gente e o seu tão antigo rito religioso.

Todos os dias dedicava algumas horas a aprofundar os conhecimentos da língua gueês, a tentar ler os antigos livros e depois a trocar ideias com os monges, sobretudo ouvindo o que a sua sabedoria tinha para lhe oferecer.

No final da estadia tinha conquistado mais uns quantos amigos que lhe pediam que voltasse mais vezes. Jamais lhes tinha aparecido a possibilidade de discutirem com outro etíope, mesmo que nascido em outro país, os detalhes – que detalhes são – que não permitiam que as duas Igrejas, ou os dois ritos, se unissem.

Intransigência e valores humanos, muito além de problemas teológicos, separavam-nos! Só uma grande capacidade de humildade de todos os envolvidos poderia levar a unir sob a Sagrada Cruz a mesma doutrina simples. Tarefa gigantesca por tão simples que era.

Os homens são capazes de grandes feitos, mas reagem com dificuldades ou impossibilidades aos mais simples.

Cipinga, entre o ajudar a montar esquemas de abastecimento de água, celebrar as suas missas, dar instrução nas escolas e ajudar nos postos de saúde a fazer curativos e a prevenir doenças entre a população, meditava em tudo o que ia vendo.

Conversava muito com o velho missionário, que mostrava um sorriso de felicidade e desânimo. Nada mais poderia desejar do que ver todos os homens num mesmo redil, mas sabendo que se em 2000 anos o que se tinha conseguido pelo mundo fora era exactamente o contrário, a dispersão, o surgimento de novos ritos e crenças, muitos deles encapando negócios e enriquecimento vergonhoso, o desânimo não lhe deixava grande margem para a felicidade.

Um dia – um dia quando, Senhor? – isso vai acontecer e para isso ele ali estava há meio século, oferecendo tudo quanto tinha: a sua vida.

O nome do missionário Cipinga ia sendo conhecido e respeitado entre os missionários católicos e os monges ortodoxos. Tornara-se uma espécie de profeta da boa vontade e do entendimento, estimado por todos que o iam conhecendo.

Chamado para secretariar o provincial da ordem em Adis Abeba, e ao mesmo tempo reestruturar o seminário para a formação de padres etíopes, talvez a mais importante de todas as tarefas para que a Igreja católica deixasse de ser a "Igreja estrangeira", o ainda jovem padre ficou numa situação em que, apesar de lhe ter diminuído o trabalho físico de pedreiro, canalizador, agricultor, professor e outras coisas, sabia que muito mais lhe seria exigido.

Coordenar todo o trabalho das várias missões, com todas as dificuldades que um regime marxista, implantado havia poucos anos, criava, e ainda reabrir o seminário, ocupavam-no de tal modo que pouco tempo lhe sobrava para dormir.

Quando o primeiro sacerdote etíope foi ordenado, a festa foi grande. A Igreja recomeçava a ser "nacional". Pouco a pouco, outros sacerdotes foram sendo ordenados.

O padre provincial adoeceu e Cipinga teve que o substituir. Com menos de 40 anos é chamado a Itália e a Roma.

O seu trabalho, conhecido minuciosamente, levou o Santo Padre a nomeá-lo bispo auxiliar do Metropolita de Adis Abeba, Arquieparquia de Adis Abeba, Dom Francesco Cipinga.

Quando a notícia lhe foi dada, Dom Cipinga, ajoelhou-se, humilde, e pediu a todos os Deuses que tão bem conhecia que o ajudassem na nova e trabalhosa missão. Um mês depois foi consagrado na Catedral da Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria, em Adis Abeba.

Antes da consagração, pediu que o deixassem ir passar uns dias junto daqueles que lhe proporcionaram ter chegado onde chegou: o seu pai, bem velho, assim como o padre José Maria e todo aquele povo que ele tanto amava e respeitava.

Não é difícil imaginar a festa no Norte de Moçambique. Cipinga era bispo! Festa com lágrimas nos olhos ao ver que os dois velhotes pareciam estar à espera dele para se despedirem da sua vida na Terra.

Comoção imensa, os Deuses uniram-se e decidiram levar para o Alto, no mesmo dia, aquelas grandes figuras de santidade.

Dom Francesco celebrou missa solene e a sua homilia foi ouvida por toda aquela imensa gente a quem as lágrimas corriam soltas.

À sua mãe, velhinha, rosto engelhado, marcado pelo tempo e vida dura, lembrou também o momento em que fechou os olhos àquele estrangeiro que o seu povo acolhera e daqueles olhos secos não conseguiram sair as duas últimas lágrimas. Mas o seu coração estava sempre a agradecer pelo filho que tão longe tinha chegado e que tanto tinha feito para o bem do seu povo.

Dom Francesco não pôde demorar-se: tinha que assumir o seu novo e grande cargo em Adis Abeba. Despediu-se da mãe e de todo o povo que tanto o respeitava e amava, sabendo que à medida que ia subindo de responsabilidade, mais tinha que apelar a todos os seus Deuses.

V – A caminho do Vaticano

Foi recebido em Adis Abeba com muita alegria e festa por toda a comunidade cristã, destacando-se o cardeal metropolita, que via chegar um auxiliar de inúmeras qualidades. Viam-se os missionários católicos, padres cristãos católicos e coptas, e tanta outra gente.

Para o cardeal, que estava cansado e doente, a chegada de um auxiliar foi uma grande alegria.

Cipinga começou logo o seu trabalho, administrando e visitando paróquias, sempre em aberto e franco diálogo com todos, o que mais levava a que a sua personalidade fosse conhecida e admirada.

Passados pouco mais de três anos, o metropolita, por doença e idade, teve que se resignar. Ninguém se admirou ao ver aquele jovem, habituados que estavam a só verem bispos idosos alcançarem os postos mais responsáveis, ser indicado para lhe suceder.

Dom Francesco Cipinga é de imediato nomeado metropolita, muito respeitado e admirado por todos, inclusive por membros doutras crenças.

O tempo corre e passa rápido. No ano seguinte o Papa morre. Dom Cipinga está em Roma para uma Conferência Episcopal convocada pelo Papa que entretanto faleceu e decide aguardar para conhecer o novo Eleito.

Realiza-se o Consistório, onde os cardeais, como sempre, levam já grupos formados para elegerem um escolhido, e daí o não conseguirem entender-se sobre o sucessor de Pedro.

Saiu fumo negro por diversas vezes, com o povo na Praça de São Pedro triste pela demora na escolha do novo Pastor Universal.

Era conhecida a fama e grande a admiração pelo novo metropolita de Adis Abeba, e a Igreja sabia que tinha que escolher um novo Papa, ainda relativamente novo, e com o respeito dos países onde a religião católica consegue seguir com firmeza, e onde mais católicos existem em todo o mundo.

Dentro do secretismo do Consistório, alguém lembrou e propôs o nome do metropolita de Adis Abeba, Dom Francesco Cipinga, mesmo não sendo cardeal.

(continua na próxima edição)


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