PENA & LÁPIS


Correspondente do Brasil:

Habemos Nigrus Papam – Parte I

Por Francisco G. Amorim

Sol Português

Esta "história" foi começada a escrever em 2006. Estava prevista ser um livro escrito "a duas mãos", onde um amigo desenvolveria uma parte, muito importante, que seria a pesquisa de um casal de arqueólogos que em Akxum iriam dedicar as suas vidas à procura da Arca da Aliança.

Esse amigo teve imensos afazeres e, como é sabido até hoje, a Arca da Aliança continua a ser um mito judaico da Bíblia, enquanto que o Papa africano teve que seguir sozinho o seu longo e penoso caminho como adiante ireis ver.

Daí o longo tempo que separa o início da escrita do fim, sem os cansados e desiludidos arqueólogos. Fixei-me só, triste e abandonado... em fazer um pequeno resumo da vida de um grande homem, saído do mais humilde dos rincões deste planeta, para ser eleito o Papa que todos desejamos.

Cheguei a sonhar que esse Papa acabaria por aparecer e ajudar a salvar, não só a Igreja, mas a vida de todos os homens, de todas as religiões, de todos os humanos. Porque não? Todos sabemos, ou pressentimos, que esta civilização galopante, sôfrega de poder e dinheiro, não tarda a desaparecer.

Como ainda é cedo demais para o fim do nosso planeta, lembrei-me de Lavoisier e da sua máxima, que pode dar um pouco de ânimo em relação ao futuro: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".

Os que sobreviverem vão entrar numa nova era e é nessa era que o nosso Nigrus Papam vai desempenhar o seu papel. O fundamental é que TODOS alcancem a felicidade.

I - Etiópia

País de grandes contrastes, grandes secas e grandes lutas, antigamente tribais, coloniais – foram os únicos a derrotar o invasor italiano – e depois religiosas com a chegada do islamismo, fome, e muita, muita história que remonta a milhões de anos. Isto para dar uma ideia, insignificante, da Etiópia.

Foi lá que encontraram aquela "vovózinha", a Lucy, que faria o elo entre os sapiens e os australopitecos afarensis, que terá vivido há mais de três milhões de anos e que morreu porque caiu de uma árvore! (O que estaria a vovózinha a fazer no alto de uma árvore? Quem faz isso são as crianças, como eu fiz quando tinha até uns 10 ou 12 anos... e não caí.)

O tempo, normalmente fresco a frio nas regiões de altitude, a muito quente no sul, onde começa a nossa história, começava a querer sair dos padrões normais e o calor já se fazia sentir com força.

No ano anterior as chuvas tinham caído mais cedo, com grande intensidade e violência, inundando as margens dos rios onde as plantações próprias da época seca procuram aproveitar a humidade das terras ribeirinhas, e o povo viu reduzidas as esperanças de abundância até à próxima colheita, que agora tardava a começar.

Ali perto, há pouco mais de 10 anos haviam chegado dois missionários franciscanos: um padre e um irmão, daqueles que sabem deitar a mão a qualquer coisa e que parecem descansar nunca, e que aos poucos foram construindo, com grande sacrifício, a missão que se mantinha com muita dedicação, mas poucos adeptos.

Poucos tempo depois, quando um mínimo de infra-estrutura fora preparada, chegou um pequeno grupo de Irmãs que de imediato se dedicou a assistir os doentes da região, indo até de noite, indiferentes ao tempo que fizesse, à mais humilde choupana onde os seus conhecimentos e carinho acabaram por fazer milagres.

Grande parte da população estava islamizada, sem que isso tenha posto um fim ao animismo nem ao sincretismo tribal, de que não era excluída a ideia de uma divindade, um Deus Único Criador, que o Islão ajudou a confirmar e até a lhes dar um conhecimento superior.

Como é evidente, os homens aproveitaram arraigadamente as prerrogativas que o Alcorão lhes concedia, bem na linha da antiga tradição africana de serem os senhores absolutos com direito a quantas mulheres lhes aprouvesse, tanto mais que o número de mulheres sempre era proporcional à riqueza ou hierarquia do marido dentro de todo o povo.

Se a mulher já era uma serva, passou à condição de quase escrava, propriedade do seu marido e senhor.

Os missionários debatiam-se assim com uma enorme dificuldade em progredir, para trazerem mais almas para o "seio do Senhor"! Em todo este tempo teriam alfabetizado poucas dúzias de rapazes e só uns raros pareciam ter aceite o cristianismo na sua totalidade.

Às moças, reservadas para funções específicas numa sociedade dominada pelos homens, fora-lhes de princípio vetada a entrada para a escola, mas o constante exemplo das caridosas Irmãs acabou por quebrar esse tabu e levado para a missão algumas que ali aprendiam a ler, a escrever e a costurar, a cuidar da família e dos doentes, aplicando o muito que a filosofia e a medicina chamada ocidental também tinha para oferecer, além de ganharem uma diferente consciência da sua condição de mulher como ser humano.

Com o passar dos tempos, o respeito sempre demonstrado pelos missionários pelas velhas tradições locais, ao contrário do que se verificou em tanto outro lugar, e o exemplo de abnegação e coragem das Irmãs, tinha-lhes granjeado, reciprocamente, o respeito da população, incluindo os velhos e autoritários chefes.

Mas chover, não chovia, e todos estavam preocupados.

O velho Ce Nansimu, o cisango, quase entrevado, ele que tantas vezes, tantos e tantos anos, tinha feito, com os seus dons e conhecimentos chegar a chuva, nada mais podia fazer. Há quase um ano nada mais fazia do que definhar, estendido numa também velha esteira, aguardando o último suspiro que o viesse livrar das dores que o atormentavam.

Seu filho, já homem, família constituída, recebera do pai toda a formação de espiritualidade, talvez magia e medicina tradicionais, e sentia-se obrigado, na impossibilidade do velho pai, a assumir esse cargo junto dos seus, apesar do profundo respeito que aquele lhe inspirava e a que não queria, de forma alguma, faltar. Não podia assumir qualquer atitude ou substituir o grande cisango enquanto não fosse ele próprio que o ordenasse e impusesse as mãos.

Como sempre, numa tarde quente, o sol muito vermelho tocava já na copa das mais altas árvores da densa floresta, sagrada – porque não sagrada, se ele aí tanta vez tinha ido com seu pai e assistira a fenómenos que a sua mente não conseguia explicar? – Nansimu sentou-se do lado de fora da casa do pai e ali ficou olhando a quietude do dia que terminava.

O seu pensamento era só para o velho pai, doente, moribundo, de quem a vida estava a despedir-se, depois de tantos e sofridos anos. Todos sabiam que tinha chegado a hora do seu descanso e não desejavam que sofresse mais. A sua mãe já os tinha deixado e o bom velho tudo quanto queria agora era juntar-se a ela e aos seus antepassados que ficaram muito longe no tempo e no espaço.

Um pequeno sussurro chamou a sua atenção. Entrou no modesto casebre, ajoelhou-se junto ao pai, que jazia estendido na sua esteira, e com a cabeça prostrada, sem pronunciar palavra, aguardou que o velho lhe transmitisse algo que ele haveria de entender como a responsabilidade pela nova missão.

Na face do velho não se atreviam a cair duas lágrimas, quase só de sal, porque o corpo definhava. Colocou ambas as mãos na cabeça do filho, demorou uma instantânea eternidade e limitou-se a sussurrar.

Naquele momento, todo o culto que lhe vinha desde há inúmeras gerações, sempre transmitido com todo o cerimonial e respeito, confirmava-se no filho, que assim deixava de ser o Pequeno Nansimu. Por fim, com dificuldade tirou do pescoço um muito velho e pequeno saco e balbuciou:

– "Aqui tens a base das nossas vidas: um pouco de terra, uma semente de milho, de algodão, de feijão, de mbila (1) e uma folha de mandioca, e um dente de leão e outro de impala. Já vêm do meu pai, do pai dele e bem mais para trás. Com isto e água, o nosso povo viverá para sempre."

Conforme disse João Paulo II, os africanos têm um profundo sentido religioso, o sentido do sagrado, o sentido da existência de Deus criador e de um mundo espiritual. A realidade do pecado, nas suas formas individuais e sociais, é bem percebida pela consciência daqueles povos, como sentida é também a necessidade de ritos de purificação e expiação.

Na cultura e na tradição africana, o papel da família sempre foi considerado como fundamental. Aberto a este sentido da família, do amor e respeito pela vida, o africano ama os filhos, que são recebidos alegremente como um dom de Deus.

É precisamente o amor pela vida que os leva a atribuir tão grande importância à veneração dos antepassados. Eles crêem instintivamente que os mortos continuam a viver e permanecem em comunhão com eles.

Os povos da África respeitam a vida desde que é concebida até nascer. Alegram-se com esta vida. Demonstram respeito pela vida até ao seu termo natural e reservam um lugar no seio da família para os anciãos e os parentes.

As culturas africanas têm um sentido muito vivo da solidariedade e da vida comunitária. Em África, não se concebe uma festa que não seja compartilhada por toda a povoação. De facto, a vida comunitária nas sociedades africanas é expressão da família alargada.

A toda a cena assistia, do lado de fora, espreitando curioso com os seus olhitos brilhantes para dentro daquela escuridão, uma criança a quem o agora ex-Pequeno Nansimu havia, ao nascer, chamado Dejaz Kussa de Cipinga, o Universo, o Céu e a Terra, tanta fora a alegria com o nascimento deste filho – o seu primeiro – havia já sete anos, num dia em que o avô tinha feito descer do Céu, sobre a Terra, a água de que tanto necessitavam para que as plantações crescessem e produzissem o indispensável alimento.

A fronte do velho estava molhada com o esforço e ao fechar os olhos, cansado, começou a lembrar-se da sua infância, lá muito longe. Tão longe que demorara muitas e sofridas luas para chegar onde constituíra família e ia agora deixá-la.

Desde sempre, o povo a que pertencia, os oromo da Etiópia, a maioria do país, a quem os europeus chamavam de galla, viveu envolvido em lutas que tinham por base as diferentes crenças religiosas de que os poderosos se serviam para alcançar vantagens pessoais.

Animistas, cristãos, judeus e muçulmanos nunca se entenderam e já seu pai contava que se perdiam nas noites do tempo as lutas entre todos eles. E por isso, do pai ouviu muita vez que as guerras só trazem morte e destruição, e o diálogo, paz e amizade.

Foi dele que Nansimu recebeu toda a iniciação aos conhecimentos da natureza, ao respeito pelos antepassados, à certeza dum Deus Supremo que rege o Céu e a Terra, a quem se devem fazer oferendas e sacrifícios para que não nos esqueçamos d´Ele e recebamos o Seu apoio, como desde sempre, foi devagar transmitindo ao jovem Cipinga.

Alguns anos passaram e após dois de grandes secas e muita fome, Cipinga, na altura com 25 anos e chamado Dejaz Kussa, quando no final do dia regressa a casa, vindo da floresta onde tinha ido procurar comida, encontrou a sua aldeia arrasada e toda a família assassinada!

Chorou, enterrou os seus queridos mortos segundo o costume tradicional da sua religião primitiva, conseguiu ainda encontrar no pescoço do velho pai o saco que ele tinha visto o avô entregar-lhe e guardou-o também ao peito, onde foram caindo algumas lágrimas. Depois, sentado junto aos túmulos dos seus, deixou-se ficar, cabisbaixo, tentando assimilar que, mesmo sem ter recebido a bênção de seu pai, era ele agora o cisango.

Mas não podia ficar por ali. O perigo era grande e com toda a família aniquilada, como sobreviver? Decidiu pôr-se a caminho de outras terras onde talvez essa constante devastação e antagonismo não tivessem ainda chegado.

A sua aldeia situava-se no sul do país, a poucos dias da fronteira com o próximo, o mais tranquilo, o Kenia. Foi nesse sentido que começou a caminhar. Andou muito, muito tempo. Atravessou territórios pertencentes a tribos desconhecidas que, além de se enfrentarem entre si tinham também um inimigo comum e mais poderoso, o colonialismo cínico.

Varou rios e montanhas, temeu feras que o rondaram, afastava-se ao ouvir o latido de cães, sinal da presença de gente que não queria enfrentar. Com receio de ser apanhado por quem o considerasse bandido ou de qualquer forma inimigo, Dejaz caminhava durante a noite, livrando-se assim de dormir com o frio das montanhas e de caminhar com o muito calor que fazia durante o dia.

Um dia, bem longe viu a mais alta montanha, que não se comparava com as da sua terra. Admirou-a, louvou a sua beleza, e seguiu em frente.

Comia mal. Poucos frutos, algumas raízes, um ou outro raro e pequeno animal que dificilmente conseguia agarrar, as forças a diminuírem rapidamente. De princípio ainda foi contando os dias, mas de tanto cansaço, fome e quase desorientação, começou a perder a conta. Só sabia que tinha andado muito e que não encontrara nada onde lhe parecesse poder ser recebido sem ser feito escravo ou prisioneiro.

Exausto, muitas semanas já nesta fuga, sentia que as forças se esgotavam. Já não conseguia vencer as mesmas distâncias como as dos primeiros dias da caminhada.

Quando as pernas já não lhe obedeciam, sem já saber para que lado caminhava, esgotado, desorientado, muito magrinho, sentiu que não aguentava mais e pensou que tinha chegado a sua hora. Estendeu-se debaixo de uma sombra acolhedora, balbuciou algumas orações, durante as quais pediu ao pai que o recebesse, e ali se deixou ficar à espera de ver o rosto do seu pai a sorrir-lhe.

Adormeceu, e no seu sonhar viu os pais e irmãos, e ouviu vozes que sussurravam algo imperceptível, mas que lhe chegavam com um tom carinhoso. No seu inconsciente sorriu. Estava a chegar perto dos seus.

(continua na próxima edição)

(1) Mbila - Árvore de madeira forte, muito procurada; pterocarpus angolensis.


Voltar a Pena & Lápis


Voltar a Sol Português