PENA & LÁPIS


Os regimes mascaram-se

Por Inácio Natividade

Sol Português

Quando da minha juventude, transbordava amor para além da conta. O amor não necessita ser interno, mas vivido intensamente e ser genuíno enquanto dura.

Certas idades permitem tudo, incluindo insubordinação e menos reclusão. Na minha juventude, era tudo vivido no terreiro, um chão ritualizado à rebeldia ilimitada.

A juventude efectivamente nunca questionou a efemeridade. Nada é efémero nem verdadeiro, apenas uma etapa na aprendizagem, muitas vezes inconsequente, sem imaginar as vinhas da ira.

Havia qualidades de espírito e da alma, contudo eram diferentes. Havia desigualdade moral e política, autorizada pelo consentimento da ideologia do regime.

Gostava de ir ao cinema. O limites entre a vida e a arte são insondáveis e apreciava ver actores e actrizes a esforçarem-se em se exceder para nos envolverem no enredo.

Era um entretenimento que permitia elevar-me das dunas à volta e sonhar para além daquele universo em que a maioria vivia de cabeça cabisbaixa, mas nem com isso conformada.

Se a arte do cinema era a encenação, não eram apenas os artistas os que mais viviam longe do mundo real. Éramos todos jovens, superdotados, prontos a encenar sintomas de insubordinação ao regime sabendo que a verdadeira luta era clandestina, a ser levada a cabo na surdina.

À medida que fui crescendo, fui desfolhando actores de carne e osso como eu e ao descobrir que os derrotados nas fitas domingueiras eram sempre os mesmos índios, negros, indianos, etc. passei a desinteressar-me.

Quanto às mulheres, se fossem feias o papel que lhes era reservado era de ama seca ou esposa do vilão enquanto as bonitas eram eleitas para o bom rapaz.

Era imperativo da parte do sistema colonial colocar no cinema a pintura, dança, cantares e arte em geral das culturas negras, africanas, orientais ou indianas sob ângulo depreciativo.

Filmes com actores negros eram censurados. Os produtores, mais a ideologia do regime, gravitavam na aprovação das elites e tudo o que fugia ao enquadramento era censurado. Havia uma verdade universal sintonizada no ponto de vista do estado e dessa forma Joseph Goebels era glorificado.

O fenómeno "fake news" remonta a essa era, em que a Alemanha nazi, mesmo sabendo que estava a perder a guerra, prosseguia o trilho de massificação da mentira. O colonialismo na sua essência não deferia do nazismo ou do fascismo. Eram ambos farinha do mesmo saco.

As censuras depreciavam ou sublimavam a interferência do regime na criatividade e a conclusão é que toda a criatividade reflecte épocas. Assim, toda a arte é um movimento de emoções e sensações a reflectir culturas em que a moral dos regimes políticos assentam a dominação.

Apenas mais tarde, quando comecei a ler livros de autores fora do ocidente, passei a ter consciência política do fenómeno. Entendi que a criatividade era universal e não dom e talento de uma raça.

Para o regime colonial era necessário bloquear a cultura africana e outras, para dar tempo a cimentar a ideia de que era a única verdadeira. Tive de fazer uma viagem no tempo para que de todos os ângulos pudesse entender que os regimes políticos, por conveniência e questões de sobrevivência, usam a mesma máscara dos actores para assumirem o protagonismo.

O empoderamento ajudou a libertar a mulher, contudo normas sociais permitem que os conceitos do patriarcado continuem a gerir o seu domínio.


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