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Correspondente de Portugal:A Romântica Por Jorge Moreira Leonardo Sol Português
Iniciei-me na leitura de Eça de Queirós por influência dum superior hierárquico e amigo que nutria pelo imortal prosador uma admiração sem limites. Comecei talvez pela porta errada pelo "Crime do Padre Amaro" e a minha consciência de pouco mais de adolescente, ademais criado no seio duma família católica Graças a Deus! foi fortemente abalada pelo que, então, considerei a amoralidade da obra. Desse estado de espírito dei conta ao meu "padrinho queirosiano". Respondeu-me aquele amigo, de saudosa memória, que uma obra não é moral ou amoral nem tampouco imoral pelos assuntos que aborda mas, sim, pelo tratamento que se lhe dá e, muito principalmente, pelas soluções apresentadas. Não é pintando o Mundo cor-de-rosa que se previnem os(as) incautos(as). Foi, assim, uma maneira simples de me dar a conhecer as preferências que o autor, por sua vez, nutrira pelo Realismo. Hoje, quando me preso de ter lido, praticamente, toda a vasta obra do autor, mas também muitas outras, dou inteira razão àquele amigo. De facto são muito mais prejudiciais aos adolescentes e jovens aqueles romancezitos, inocentes na aparência mas que criam nos seus espíritos uma fantasia que, quando acontece e sempre acontece o confronto com a rude realidade das coisas, tudo se torna muito mais doloroso. Nos tempos já distantes da minha adolescência nós, rapazes, procurávamos na leitura os temas que, obviamente, correspondessem aos próprios temperamentos. Os mais aventureiros liam Emílio Salgari, com o seu Sandokan, esse herói imbatível que com a sua cimitarra rachava inimigos de alto a baixo e até esfolava tigres à mão, independentemente de terem ou não bengala. Os mais misteriosos davam as suas preferências ao Sherlock Holmes, com as suas mirabolantes deduções que não permitiam chances ao mais ardiloso dos criminosos e deixavam boquiaberto o pobre do Watson. Os mais científicos optavam por Júlio Verne, com as suas espantosas descrições que, ora circundavam a Lua, ora desciam ao interior da Terra, ora ao mais profundo dos Oceanos. Finalmente, os mais mórbidos liam histórias de terror que durante a noite lhes causavam dantescos pesadelos e, não raro, acordavam a família com os seus gritos de medo. As moças de então, essas suspiravam românticas com os livros da colecção azul, que por sua vez contavam a história do fidalgo que se apaixonara pela mendiga que, após muita peripécia, se vem a saber que é nem mais nem menos do que a filha duns fidalgos, cujo sangue é dum azul ainda mais retinto do que o do noivo, mas que fora raptada quando ainda criança situação que conhecida a tempo e horas teria evitado muito desgosto e muita discussão. Ou então a história da modesta secretária que, ao ingressar na empresa, a primeira coisa que faz é apaixonar-se pelo patrão, mesmo antes de saber onde ficava a máquina de escrever em que havia de gastar as unhas para ganhar o sustento, enquanto que o patrão, após anos de desdenhosa indiferença, acabava também por se apaixonar e lá casavam e viviam felizes para sempre. Conheci, por essa época, uma moça que dedicava a essas leituras tudo aquilo a que hoje se chamam os tempos livres e que depois, numa atitude de quase êxtase, as relatava até ao mais ínfimo pormenor. Chegava a devorar um livro por noite e, assim, a gastar o tempo que devia dedicar ao descanso quem, como ela, passava o dia na oficina dum alfaiate puxando pela agulha. Deve ter lido "O John, chauffeur russo" um número inimaginável de vezes e até era capaz de saber de cor o número da página, e não duvido que até o parágrafo em que o autor descreve o primeiro beijo que o condutor-fidalgo trocara com a sua burguesa patroa. Os galãs dessas histórias eram sempre "altos e magros" e as heroínas pessoas perfeitas que, por vezes, o autor, mais para quebrar a monotonia do que por qualquer preocupação de realismo, conspurcava dizendo que era um nadinha egoísta, pobre pequena. Em nome da verdade se diga que esse perfil obrigatório do galã, para mim que sempre fui do tipo baixote e que, devido a um apetite devorador, para o gordote, bulia-me com os nervos. Não levei, porém, muito tempo a descobrir que no exército do Cupido são diversas as armas. Ademais, o próprio Eça, no livro que marca a minha estreia, o reconhece. Com tanta fantasia na cabeça, rejeitando as hipóteses poucas de namoro que lhe foram surgindo (ela de quem as pessoas diziam um humilhante "até que nem é nada feia!"), como os fidalgos do seu tempo andavam em busca de herdeiras ricas que, embora adulterando-lhes o sangue, permitiam-lhes reconstruir palacetes e solares, e os patrões, para além de lhe dispensarem a maior das indiferenças, ainda lhe pagavam como a safada da cara (deles, claro), ficou para tia. Após uma longa ausência da terra, encontrei-a um dia, ia eu na companhia duma irmã minha, amigas desde a adolescência. Já então trintona, ainda assim, para descrever um derriço que terá mantido com certo homem definiu-o como "alto e magro". Nova e ainda mais prolongada ausência e então já cinquentona procurou-me no meu local de trabalho, apresentando-me como marido o homem que a acompanhava. Em vão procurei no boçal energúmeno um único traço do perfil obrigatório do galã das historietas que ela lera na sua adolescência e juventude. e que tanto a fizeram sonhar. Trocámos um olhar cúmplice que, traduzido em palavras, poderia ser assim: "Foi o que se pôde arranjar" teria dito ela. "Pelo menos é real. De carne e osso" responderia eu. Mais carne do que osso, por sinal. | ||||
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