PENA & LÁPIS


Correspondente do Brasil:

Habemos Nigrus Papam – Parte III

Por Francisco G. Amorim

Sol Português

Nansimu não estranhava o atraso cada vez mais acentuado na chegada do filho porque sabia bem que ele andava trilhando os caminhos da sabedoria. Era raro não levar consigo um ou outro livro que o padre lhe emprestava e de que lia alguns capítulos ao pai, que o ouvia maravilhado.

– "Cipinga, estou muito orgulhoso de ti. Mas agora vamos ao nosso estudo. Tens muito que aprender. Não te esqueças que quando eu morrer vais ser o cisango do nosso clã."

Saíam de casa, embrenhavam-se na mata e devagar, com a paciência própria dum pai e dum mestre mago, Nansimu ia transmitindo ao filho os conhecimentos adequados à sua idade. Nomes de animais e plantas, como se caçavam e respeitavam uns e outras, para que serviam determinadas ervas, em que época do ano deveriam ser colhidas, como utilizá-las e tudo o mais que o jovem aos poucos ia podendo absorver.

Há muito que o culto dos antepassados e o respeito pelos mais velhos fazia parte intrínseca da vida do garoto.

– "Pai, não era melhor eu escrever num caderno tudo isso que me contas? Seria mais fácil para fixar, porque eu podia depois ler muitas vezes ou até procurar nessas páginas se algum dia me esquecesse de alguma coisa."

– "Meu filho, não deves escrever o que te digo, mas sim fixar na tua cabeça porque se os teus escritos forem parar à mão de algum homem de espírito mal intencionado, poderiam fazer muito mal a todos nós."

Cipinga ouvia, guardava e progredia com facilidade, o que deixava o pai feliz e orgulhoso.

Quando terminou os primeiros estudos que a missão lhe proporcionava, padre José não queria arriscar-se a deixar "fugir" aquela alma que ele pressentia que seria amanhã um grande trabalhador nas vinhas do Senhor. O maior problema era convencer Nansimu a deixá-lo seguir para o seminário, lá longe, longe, na cidade, a alguns dias de caminho percorrido parte a pé, parte com algum carro que por acaso o pudesse levar, e de onde só voltaria a casa, com o mesmo trabalho e por alguns dias, durante as férias!

Todas as noites o padre fazia as suas preces para que Nansimu fosse tocado pelo Ntanga Lwembe e acedesse ao seu pedido. Não foi fácil o trabalho do padre. Nansimu relutava em aceitar, mas bem fundo no seu coração sabia que na cidade o seu filho ia tornar-se um sábio.

Garoto inteligente e dedicado ao estudo, mas sábio estava ele também a caminho de ser com os ensinamentos que, vindos de gerações e gerações, lhe estavam a ser transmitidos, ensinamentos esses que ele não tinha mais a quem passar e que de forma alguma queria que fossem perdidos ou ultrapassados pelo ensino do seminário.

A conversa entre ambos demorou muitos dias. Aliás, várias noites, quando o padre vinha até à aldeia, depois das orações do fim do dia, já escuro, e ficava com Nansimu, junto à fogueira, a que tantas vezes se juntava também o mualimo, a conversar sobre... sobre o quê? Cultura, tradição, costumes, Deus.

Cipinga, antes de adormecer, ainda escutava um pouco, mas logo o sono o afastava deste colóquio simples e profundo em que seu pai e o padre dificilmente encontravam pontos de discórdia.

Chegou a altura e Cipinga abalou para o seminário. Quando se aproximava a época das férias, dois homens viviam com uma ansiedade grande, talvez igual: o padre, para ouvir os progressos do seu pupilo querido, e o pai, para ver se ele não havia esquecido algo do que lhe ensinara.

O pouco tempo que passava na aldeia dividia Cipinga entre o pai e o padre, um pouco com o mualimo, e ainda com os rapazes, já homens, que o convidavam para caçar ou correr por aqueles matos.

À medida que os anos corriam, mais profundas e difíceis de responder eram as questões que ele colocava aos três. As respostas, mesmo não as recebendo, guardava-as para si, para as ir digerindo com vagar, porque o tempo só passa quando não atentamos para ele.

O padre, cabeça quase toda branca, passava mais e mais tempo junto a Nansimu e agora também com o mualimo, conversando, entrando em amigas filosofias, e na Missão recebendo sempre mais alunos que queriam aprender algo que pudesse valer-lhes nas cidades que o desenvolvimento ia atraindo. Cansados todos de décadas de trabalho intenso.

Nansimu, um ou outro cabelo branco destacando-se também entre os outros, uma ou outra ruga, que mais de meio século não perdoa, sempre tranquilo, mas sem jamais duvidar da existência de um Ser Superior, não se atrevia a aderir a nenhum dos cultos que os seus amigos conduziam. Muitas vezes era a sua intervenção simples, natural, sábia, que punha fim a alguma discussão de carácter teológico.

Falavam muito sobre os pontos de concórdia e raramente nos que os poderiam mais dividir.

Durante uma das últimas férias, desabou sobre a aldeia mais uma daquelas trovoadas que os trópicos e as montanhas nos exibem com grandiosidade, incendiando a modesta mesquita de pau e barro, coberta de palha e zinco. Cipinga ainda tentou ajudar a salvar o pouco que lá havia, mas tudo foi em vão. O único livro de orações nunca ficava ali, mas sim guardado em casa do responsável pelo Islão.

Fogo controlado, Cipinga conta ao padre José o que tinha sucedido. Pelo modo de se expressar, o padre não teve dificuldade em interpretar o seu pensamento, que há muito também rondava a sua cabeça: a igreja da missão, a igreja do Deus Único, deveria servir para todos os cultos.

O ecumenismo não era novidade. Os muçulmanos não deveriam recusar esta proposta, que Cipinga apoiou com manifesta alegria e se prontificou a levar ao respeitável mualimo.

Horários definidos, poucos dias depois já os muçulmanos oravam, seguindo o seu Alcorão dentro da igreja da missão, e o povo sentiu que esta aproximação entre todos era o mais forte argumento da existência de um Deus Único, quer lhe chamassem Deus, Alá ou Ntanga Lwembe.

Nansimu aparecia vez por outra em qualquer dos cultos. Saía consolado de ambos porque, se no íntimo de cada fiel o pensamento estivesse de acordo com as preces que faziam, o mundo teria que melhorar, o seu Ntanga Lwembe ficaria muito mais sorridente e menos trabalho teria ele em lhe pedir que mandasse a chuva.

Vendo os homens em concórdia, Ele não teria necessidade de os castigar, nem obrigar a sacrifícios maiores.

Entretanto chegava ao fim a formação do novo sacerdote, que havia escolhido a ordem dos pobres para se entregar a todos os irmãos. Franciscano, como o padre José Maria, depois de ordenado quis celebrar a primeira Missa na igreja da sua terra.

A aldeia estava em festa.

– "O nosso Cipinga vai voltar padre, nosso pai!"

Na missão, os missionários não se cansavam procurando embelezar a igreja que ia receber o seu filho tão querido. A alegria contagiou a população e com todos os credos e sem eles, ninguém queria estar de fora sem colaborar com a festa.

Pintou-se a igreja, limparam-se as ruas, foram pelas matas buscar flores e verduras para encher as casas em todo o caminho que o novo senhor padre deveria percorrer. Vestiram os mais garridos panos e até o mualimo estreou uma colorida túnica nova, Kanzu, bem como um novo cofió.

Quando ao longe se começou a ouvir o ronco de um carro, a respiração parou! Ouvidos de caçador à escuta confirmavam: É ele. Ao longe, a estrada levantava uma nuvem de poeira que pela primeira vez era recebida com alegria.

Chegou por fim, acompanhado do bispo da diocese a que pertencia a Missão. O bispo não fez qualquer sucesso. Os gritos, as danças e os cânticos eram em louvor do filho da terra. Alto, homem bonito e de semblante sereno, no seu humilde hábito da Ordem dos Pobres, Cipinga estava emocionado.

Nansimu e padre José Maria não conseguiam articular palavra, este quase esquecendo que teria que, em primeiro lugar, homenagear o seu bispo, enquanto Nansimu não se cansava de admirar o seu pequeno Cipinga, que acrescentou ao seu nome o do seu segundo pai, e pai da Ordem: Francesco. Padre Francesco Cipinga!

Logo atrás o mualimo, imponente no seu garrido trajar, com mal disfarçado orgulho, abraçou com ternura o seu discípulo. Afinal, ele também contribuíra para a sua formação.

A igreja, que nunca fora grande, desta vez parecia uma pequenina capela, tanta era a gente que queria participar na cerimónia.

Padre José Maria pediu ao bispo autorização para que a Missa fosse celebrada num largo recinto da aldeia, porque todos queriam dela participar. Final do tempo seco. Não tinha chovido, e nada fazia prever que chovesse, de modo que tudo deveria correr sem perturbações.

Assim se fez. Preparou-se um altar, sombreou-se o local com muita folhagem e num instante estava-se na presença de uma grande catedral: a natureza.

Enquanto tudo isto se preparava o bom padre José Maria conversava com o bispo sobre os problemas da sua missão e do seu rebanho, e Nansimu levou o filho para passear. Não conseguiam estar a sós porque todos queriam seguir o novo padre.

A conversa entre os dois nunca pôde ser revelada, mas certamente falavam sobre o futuro do cisango e de Ntanga Lwembe.

– "Meu pai, nada muda por nossa vontade quando ela só quer o bem. E se assim sempre procedermos, os conhecimentos do cisango e a vontade de Deus, qualquer que seja o nome que lhe dermos, andarão sempre de mãos dadas."

– "Meu filho, sabes que nada tenho que te possa oferecer, mas há uma coisa que gostaria que guardasses sempre. Veio do meu pai, do pai dele, e assim desde há muito tempo. É aquilo que simboliza a nossa vida nesta terra."

Tirou do pescoço o pequeno saco que havia retirado de seu pai, há muitos anos assassinado, e entregou-o ao filho.

– "Isto agora pertence-te. Serás tu quem vai, mais tarde, escolher o novo cisango para o nosso povo."

Cipinga, que num instante rememorou a cena do avô a morrer, comoveu-se. Respeitosamente, guardou aquela simples relíquia tão carregada de significado.

Na manhã seguinte, quando se iria celebrara Missa, o dia amanheceu claro, algumas nuvens que filtravam um pouco o calor do sol e uma leve brisa que o Lago Niassa também mandava para alegrar o ambiente, que assim se mantinha agradável e fresco.

A Missa Nova ia ser celebrada acompanhada pelo bispo e pelo padre José. Toda a aldeia estava presente. O ambiente era grandioso na sua simplicidade e tudo quanto se conseguia escutar era uma leve aragem que agitava algumas folhas.

O povo acompanhava cada gesto do novo padre, por mais simples que fosse, que sem o ter revelado a alguém trazia por debaixo das suas vestes sacerdotais toda a sua gente e a sua terra representada naquela embalagem tão pobre, com uns grãos e umas ervas. Por cima, a Cruz do seu Cristo.

A comoção não podia deixar de ser forte. Não só nele, mas em todos.

Enquanto celebrava a Missa e todo o cerimonial se desenrolava, ele ia percebendo que estava ali não somente como um missionário católico, mas como um elemento muito ligado a todo aquele ambiente, àquela gente, às florestas, às culturas, ao chão, aos antepassados. Ao povo. E sentia aquele pequenino saco pesando cada vez mais sobre o seu peito, a lembrar-lhe que muito grande seria a sua cruz para poder levar a cada um a mensagem e o exemplo para cumprir com todos os votos e objectivos da sua vida.

Lembrou-se também das cerimónias que fizera seu avô e depois seu pai, pedindo aos Céus que mandassem água para que não faltassem alimentos para as gentes. E como essas cerimónias eram carregadas de simbolismo e simplicidade, apesar de parecerem obra de magia herética!

A Missa prosseguia e chegou o momento de maior solenidade: a consagração do Pão e do Vinho pedindo ao Pai que os transubstanciasse em Seu Corpo e Sangue.

Enquanto mantinha os braços elevados segurando o pão – "Este é o Meu Corpo" – acrescentou em silêncio o mesmo pedido que os seus antepassados faziam: – "Senhor, só deves abençoar este pão e este vinho se não faltares com ele a esta gente humilde e trabalhadora. Lembra-te, Pai, que os teus filhos precisam de água para regar as suas culturas, fazerem o pão e assim Te poderem louvar e dar graças."

Ajoelhou-se. A seguir levantou o cálice – "Este é o Meu Sangue" – e prosseguiu num tão profundo silêncio que nem as folhas boliam nas árvores: – "Olha para esta gente que está aqui à Tua volta. Misturado a este Sangue está o sangue deste povo que com as suas mãos sofridas trabalham a terra. Ajuda-os, Senhor. Dá-lhes a chuva que tanto necessitam."

As mulheres gritavam com entusiasmo e fé, e todos entoavam cânticos de louvor. Os tambores ressoavam esses cânticos e essa energia que parecia vir do interior da terra em sinal de alegria e respeito.

Padre Cipinga tinha o rosto sereno, mas alguma coisa nele se alterara. Muita emoção, muita devoção e muita fé e uma tremenda carga de todos os seus antepassados estavam naquele momento a passar para cima dos seus ombros.

As nuvens que até ali nada mais faziam do que proteger aquele povo do sol dos trópicos, começam a escurecer e uns quantos pingos caem, parecendo acusar a recepção da prece da multidão.

Terminada a cerimónia, padre Cipinga foi abraçando um a um por todos os presentes. Um nunca mais acabar de emoções.

Os paramentos há muito haviam perdido aquele ar solene, amassados que estavam com os gestos de ternura recebidos de todos os da sua aldeia e de muitas outras centenas que tinham acorrido de vizinhanças mais ou menos longínquas.

A festa que se seguiu durou pela noite fora. Só o bispo se atrevera a repousar, menos afeito a estes entusiasmos e com a idade a pesar-lhe já em cima.

Cipinga era solicitado por cada um e por todos que queriam ouvir alguma palavra nova da sua boca.

Nansimu, padre José e o mualimo, juntos, olhavam aquele filho com um misto de ternura e orgulho, e quando a chuva começou a cair, de mansinho, mas firme, eles entreolharam-se num silêncio comprometido. E sorriram.

Escondido como pôde, atrás duma árvore, padre Cipinga agradeceu a todos os deuses!

De manhã a festa terminou. O bispo e o novo padre tinham que se retirar.

(continua na próxima edição)


Voltar a Pena & Lápis


Voltar a Sol Português