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Habitação:

Cooperativa da Bouça, entre o que foi e o que é

Por Sofia Branco

Agência Lusa

A história da cooperativa da Bouça, no Porto, remonta ao 25 de Abril de 1974, mas o projecto então idealizado tem hoje outros contornos, com cedências ao aluguer e ao alojamento local.

Com o nome oficial de Cooperativa Águas Férreas, é por todos conhecida como Bouça. Com projecto arquitectónico de Álvaro Siza, o corrupio de curiosos é uma constante no bairro, com acesso directo para a rua, em pleno centro do Porto.

Três estudantes estrangeiros arranham o português para perguntar a António Simões, que ali vive, se podem espreitar a sua casa, uma das 128 habitações, com uma média de quatro residentes cada, que fazem da Bouça "quase uma aldeia".

O morador e cooperante conversa com a Lusa no pátio comum, recordando que se inscreveu na cooperativa no início dos anos 2000 e esperou três anos por uma casa, para a qual fez um empréstimo bancário.

O arquitecto explica o que distingue uma cooperativa como a Bouça: "Ainda durante a construção, as pessoas estão ligadas ao processo de construção do empreendimento, vão acompanhando as obras, existem reuniões periódicas. Estão dentro de todo o processo. Começam-se a conhecer. […] Quando vêm habitar as casas, já há conhecimento mútuo."

Depois, o colectivo continua, desde logo em assembleias gerais anuais, onde se aprovam objectivos e contas e se tomam decisões sobre "a vida da cooperativa".

Se António Simões quiser vender a sua casa, tem de o comunicar à cooperativa, que "tem direito de preferência na compra" – algo que não tem exercido por falta de recursos financeiros.

Isso explica, em parte, uma das alterações substanciais à vivência na cooperativa. Hoje, 32 das casas estão alugadas.

"Ninguém nos entrega um contrato, não sabemos quem são. É uma complicação bastante grande. […] Na garagem, a gente não sabe quem lá aparece", relata Fernando Cardoso, um dos três administradores do condomínio.

A Bouça "mudou muito" nos últimos anos. Fernando Cardoso nunca pensou ver a cooperativa ceder ao alojamento local e às rendas. E lamenta que isso tenha acontecido.

"Isso entristece-me muito, não foi para isso que eu trabalhei, para que fosse para aluguer", comenta, frisando que o assunto está a ser analisado por advogados.

"[Originalmente], as casas foram vendidas, e o terreno inclusivamente, para habitação própria e permanente", lembra, na qualidade de um dos moradores mais antigos da cooperativa, que fez parte do projecto SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), iniciativa dinamizada pelo arquitecto Nuno Portas.

Logo após o 25 de Abril de 1974, o projecto envolveu arquitectos, engenheiros, técnicos e moradores na busca de solução para as muitas situações de insalubridade e precariedade habitacional em que viviam as comunidades mais carenciadas, de norte a sul do país.

Quando o SAAL foi extinto, em 1979, o processo de construção da cooperativa parou, concluídas que estavam 56 casas, e a Associação de Moradores da Bouça elegeu Fernando Cardoso para "vigiar" o local. "Não havia saneamento, água, nada. Vim para aqui segurar isto, no tempo das ocupações", recorda.

O projecto ficou parado 25 anos, mas "o senhor Cardoso", como é conhecido por ali, deu "da perna" até o pôr a andar outra vez. Quando foi ter com "o Siza" – que conhece há muitos anos _, o arquitecto nem queria acreditar que era para o acabar.

O projecto arquitectónico baseou-se "na vivência das ilhas" – estruturas de habitação precária na zona histórica do Porto -, onde "havia um grande contacto entre as pessoas", recorda António Simões.

"O facto de estes espaços estarem em galeria, não ser o típico esquerdo-direito, permite que as pessoas se cruzem com mais facilidade, se conheçam", observa. "É um ambiente mais humano, mais humanizado", considera.

O projecto arquitectónico incluía três espaços colectivos, dois dos quais – no plano original, um centro de actividades de tempos livres e um café – já foram alienados a outros proprietários.

O único que resta é a sede da cooperativa, mas está, neste momento, alugado a uma clínica, para garantir "fonte de rendimento para as despesas correntes", conta António Simões, adiantando que, no futuro, o objectivoé utilizá-lo para actividades lúdicas e culturais.

Ainda assim, acredita, o SAAL deixou sementes na Bouça. "Os antigos residentes, que participaram no processo, que ainda aqui habitam, mantêm esse espírito, de entreajuda, de decisões que são tomadas colectivamente nas assembleias da cooperativa", relata.

"Aqui, o terreno é nosso, foi pago por todos, ao contrário de muitas cooperativas que estão em terrenos que são camarários", distingue Fernando Cardoso, sublinhando que sempre lutou por este projecto, num trabalho árduo. Hoje, diz, a Bouça é um "bairro sossegado".

Recebe ali muita gente, sobretudo estrangeiros e jovens: "às vezes é uma procissão".

No escritório do condomínio, mostra a maquete do projecto, fotografias e outros documentos, entre os quais a carta de apoio dos moradores à inclusão da Bouça na lista de obras de Álvaro Siza que, no dia 6, foi submetida a candidatura a património mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), num processo coordenado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

Para isso, o bairro precisa primeiro de obter classificação nacional. "Esperamos que isso se concretize", torce "o senhor Cardoso", sabendo que isso também se traduzirá em benefícios para os cooperantes, como a isenção do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).


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